terça-feira, 5 de maio de 2009

Brutalismo - por Rute Verde Zein
















Termo de cunhagem relativamente recente, entretanto não é fácil definir-se o brutalismo de maneira acurada e isenta. Tão usado quanto esnobado pela literatura arquitetônica da segunda metade do século XX, está longe de configurar um conceito unânime, as diferentes acepções que lhe são atribuídas superpondo-se de maneira pouco clara, parecendo ser uma só quando são muitas, e para deslindá-las é necessária certa paciência de detetive. Entretanto, é tarefa inadiável quando se pretende empregá-lo para qualificar certa arquitetura paulista dos anos 1950-70.
A revisão do termo brutalismo não seria nem possível, nem completa, sem uma minuciosa releitura, entre outras fontes pertinentes, do livro de Reyner Banham publicado em 1966, The New Brutalism: Ethic ou Aesthetic?, até porque esse autor foi responsável pela cristalização de um mito de fundação que segue vincando fortemente a compreensão do Brutalismo. O livro foi editado mais de década após o surgimento do termo, quando já qualificava um grande número de obras de uma tendência então presente em todo o cenário arquitetônico internacional. Mas seu objetivo não era esclarecer o termo, mas dar-lhe uma versão própria – que de modo algum é a única possível. Bastante conhecido, muito citado e pouco lido (menos ainda, no original), o livro de Banham está a exigir uma releitura cuidadosa, que sem dúvida mostrará o quanto é ainda oportuna a remissão às suas idéias, mesmo se constatarmos estarem pejadas de deliberados deslizamentos e rearranjos historiográficos; que, entretanto, não invalidam seus importantes insights conceituais.
Mas, por que “mito de fundação”? A moderna teoria sociológica vê no mito “uma justificação retrospectiva dos elementos fundamentais que constituem a cultura de um grupo; nesse sentido, [o mito] não está limitado ao mundo ou à mentalidade dos ‘primitivos’, mas é, antes, indispensável a toda a cultura […] O reforço da tradição, ou a formação rápida de uma tradição capaz de controlar a conduta dos seres humanos, parece ser a função dominante do mito”. E qual é o mito produzido por Banham, que sua releitura atenta revela? Trata-se de seu empenho em ressaltar, a todo custo, a predominância e anterioridade dos arquitetos britânicos na constituição do Novo Brutalismo/Brutalismo. Para obtê-la, pratica uma seleção historiográfica precisa e um embaralhamento das datas especioso, cujo fito não é dar uma definição genérica e universal do termo, mas focalizar de maneira prioritária, embora não exclusiva, a contribuição criativa dos arquitetos Alison e Peter Smithson.
A afirmação do parágrafo anterior não é uma interpretação descabida desta autora: essa operação de valorização unilateral é feita de maneira explicita, nada sub-reptícia e claramente indicada por Banham. No capítulo 9.1, que encerra o livro, Banham declara-se um “sobrevivente” a relatar suas memórias e um observador nada isento, pois envolvido nos eventos que descreve, não pretendendo dar validade universal e científica a seus escritos, mas admitindo sem pejo sua militância por uma causa. E essa causa é mítica, um mito de fundação das origens: Banham advoga a precedência da contribuição britânica no estabelecimento do “Novo Brutalismo enquanto um movimento” e de passo desliza, para custódia inglesa, tanto o movimento como, por extensão, o próprio termo Brutalismo. A construção do mito foi extremamente bem sucedida: é comum a vaga noção de ser o Brutalismo de exclusiva origem inglesa, a suposição de que só possa ser corretamente aplicado nesse único âmbito, estando desautorizado em quaisquer outras circunstâncias – presunções, aliás, que o próprio Banham não assume em parte alguma. Nem poderia: é um mitólogo demasiado inteligente para não deixar entreabertas várias portas por onde se safar. Afinal, um bom mito não pode ser imposto – só engenhosamente sugerido.
A postura proselitista e interessada de Banham não escapou a uma das tentações inerentes ao conhecimento histórico, já alertada por Raymond Aron, “de pensar não apenas o que foi, mas se perguntar sobre o que podia ter sido”. Assim, desde o título (que termina com um ponto de interrogação!), Banham se pergunta se o Novo Brutalismo/Brutalismo teria sido uma ética ou uma estética – como se uma e outra coisas fossem opostas ou ao menos de convivência incompatível, o que em absoluto é verdadeiro no campo da arquitetura. E após passar boa parte do livro tentando concluir a favor da ética é suficientemente honesto para admitir, nos últimos parágrafos, a predominância da estética, “como não podia deixar de ser”. Em suas palavras: “mas o processo de acompanhar a gestação e o crescimento de um movimento foi também afinal uma decepção. Pois apesar de toda sua admirável fraseologia sobre ‘uma ética, não uma estética’, o Brutalismo nunca rompeu com o marco de referência estético […]. Para um não-arquiteto como eu, esperar que fosse de outra maneira foi ingênuo”. Entretanto, ao deixar essa declaração para a última página, quase a última linha, Banham consegue fazer o leitor menos atento crer justamente no contrário: que o Brutalismo fosse primordialmente uma tendência de cunho ético, e não estético. E assim é comumente lido e citado seu livro; e assim é considerado, precipitadamente, o Brutalismo – sempre, em detrimento das palavras finais de Banham. Mas não de seu espírito: “de maneira alguma pretendo esconder que eu estivesse seduzido, não pela estética do Brutalismo, mas pela subsistente tradição de sua posição ética, pela persistência da idéia de que o relacionamento entre as partes e os materiais de um edifício constitui uma moral prática – e essa segue sendo, para mim, a validade do Novo Brutalismo”.
Não cabe aqui uma análise completa do livro de Banham, que de resto seria muito instrutiva. Mas pode-se afirmar sem dúvida que, quando se visa buscar uma definição do que seja o Brutalismo; que ademais seja operativa e auxilie na atribuição ou não dessa qualidade a uma certa arquitetura paulista dos anos 1950-70; valerá à pena estar atento não a uma leitura empobrecida de Reyner Banham, mas à riqueza e complexidade de sua visão acerca daquele preciso momento histórico.
Dando de novo as cartas de um baralho marcado
O termo brutalismo, tanto em Banham como em seu uso corrente se confunde freqüentemente com o “movimento” do Novo Brutalismo. Também sem que se perceba claramente a diferença entre uma coisa e outra, se confunde com o uso do béton brut por Le Corbusier, material que marcou a atitude artística da sua última fase criativa (1945-65), e que se tornou referência magistral de uso corriqueiro para um sem número de arquitetos em todo o mundo nas décadas de 1950-70. Já o neo-brutalismo não nasce como estética ou ética, mas como vago denominador comum de uma insatisfação geracional dos jovens arquitetos ingleses do pós-II Guerra; um quase “movimento” muito mais restrito do que a estridência da Architectural Review quer fazer crer. E muito freqüentemente o termo Brutalismo é empregado na literatura em geral, inclusive naquela disponível na rede mundial, como indexador rápido englobando genericamente as obras de uma das tendências mais características da arquitetura moderna de meados do século 20, espalhadas por todo o planeta.
Nenhuma dessas definições do Brutalismo é plenamente dominante, todas se conectam, e todas são relativamente díspares. Para destrinchá-las há que considerá-las como coisas distintas na forma, no conteúdo, na oportunidade e no tempo. O deslinde dessas nuances e a compreensão de suas diferenças torna possível verificar mais consistentemente em que consistem as diversas acepções do termo brutalismo, e decidir quais delas, se alguma, interessaria aproveitar ou descartar. Segue-se uma breve tentativa de desembaralhá-lhas em ordem cronologicamente direta.
1947: Le Corbusier: primeiro Brutalismo
Brutalismo como nome designativo do uso de béton brut, concreto aparente, nas obras de Le Corbusier no pós-II Guerra, a partir da Unité d’Habitation de Marselha, prolongando-se até 1965; cujas possibilidades plásticas são potencializadas por meio de um conjunto característico de pequenos e macro detalhes.
Essa é de fato a acepção original, ou primeira, do termo brutalismo – como admite o próprio Reyner Banham. No momento em que surge tem sentido restrito: ainda não se trata de tendência, mas de exemplo magistral e isolado. Mas como se sabe, seus múltiplos significados ricochetearão de variadas maneiras no campo da atividade arquitetônica na segunda metade do século 20, e além.
1953-56, Novo Brutalismo Britânico, versão casal Smithson
Novo Brutalismo como nome adotado por representantes de uma nova geração de arquitetos britânicos do pós-II Guerra para qualificar um “movimento”, ou um mood, característico de certo ambiente cultural inglês da primeira metade dos anos 1950. Nesse sentido o termo é empregado nos textos e cartas do casal de arquitetos Alison e Peter Smithson publicados a partir de 1953, a seguir referendado por seu amigo Banham em artigo de 1955. Naquele momento preciso o termo não avalizava um debate estilístico, mas servia de vaga bandeira à insatisfação geracional, militantemente contrária à “acomodação” do movimento moderno em detrimento das propostas e ilusões das vanguardas, e cujo âmago inovador se buscava reavivar.
Note-se que esse clima efervescente de uma nova e talentosa geração de arquitetos combativamente em busca das próprias referências e de seu lugar ao sol tende a ser impermanente e a ceder, à medida que seus integrantes, pelas circunstâncias de sua prática profissional projetual, são chamados a selecionar caminhos preferenciais. Essa insatisfação pode ou não gerar uma escola estilística, caso em virtude desses debates um grupo de criadores venha a realizar obras de certa proximidade formal e temporal. Foi o que acabou ocorrendo após 1957; mas quando começa a surgir um “estilo brutalista” os Smithson preferem abandonar o termo e se manter independentes. Em seu livro de 1966 (mas não no texto de 1955) Banham entende ser a atitude detaché dos Smithson uma demonstração de sua opção pela “ética e não pela estética”, e que esta seria intrínseca ao “Novo Brutalismo”. Trata-se de uma interpretação de Banham, que a rigor inviabiliza a convivência entre “ética” e arquitetura (prenunciando, talvez, alguns dos excessos dos anos 1960); mas nem os Smithsons a referendam, nem declaram ter “rejeitado a estética em prol da ética”; apenas preferem sempre variar, adotam a cada passo as diretrizes estéticas que mais lhes pareçam apropriadas a cada circunstância; ou como diz William Curtis, “the Smithsons rejected any intimations of a closed aesthetic in favour of an aesthetic of change”.
1953-1960: obras inaugurais do estilo Brutalista
Brutalismo como qualificação atribuída a posteriori para um conjunto de obras limitado, mas muito significativo, realizadas em várias partes do mundo, por diferentes arquitetos, guardando entre si importantes aproximações formais, construtivas e plásticas. Nessa segunda metade da década de 1950 as obras de cunho brutalista, surgidas simultaneamente em diversos países e continentes, ainda são exceções notáveis. Tal relativa raridade de exemplos altera-se radicalmente, qualitativa e quantitativamente, a partir dos anos 1960, em prol de uma rapidíssima expansão da tendência.
1959 em diante: expansão do “estilo” brutalista
Brutalismo enquanto “estilo” que rapidamente vai sendo sistematizado, contando com o apoio e a validação de algumas obras iniciais exemplares, configurando-se rapidamente como idioma corrente que, apesar de certa variação relativa, mantém significativos traços comuns de ordem material e visual.
A partir de 1959 começam a surgir as primeiras declarações de afiliação de determinadas obras ao Brutalismo enquanto estilo, quase sempre de comentadores e críticos de arquitetura, qualificando essa filiação através da descrição e análise das obras e não a partir de um corpo doutrinário teórico a priori.
Banham sugere a possibilidade de existência de uma “conexão brutalista” ao verificar em vários países e regiões do mundo o florescimento simultâneo de obras afinadas com o cânon brutalista, mas não necessariamente afiliadas entre si, nem guardando uma relação de subordinação com algum foco central (exceto o “brutalismo” em sua primeira acepção restrita corbusiana). Para exemplificar essa “conexão” Banham cita em seu livro obras na Itália, Suíça, Japão, etc., e apenas uma obra latino-americana (no Chile). Se Banham não faz referência, por exemplo, às obras do brutalismo mexicano ou paulista talvez isso se deva apenas por desconhecê-las, pois elas ali caberiam perfeitamente pois suas características e a datação das mesmas é totalmente compatível com a “conexão brutalista”.
1966: Novo Brutalismo, versão sistematizada a posteriori por Banham
Banham denomina seu livro de “envoi”, palavra francesa que remete à idéia de um correspondente de guerra reportando as últimas novidades enquanto a batalha ainda prossegue; mas que também pode indicar, como explica o dicionário, “os versos finais de uma poesia, particularmente de uma balada, contendo uma homenagem”. E esse parece ser mesmo um de seus objetivos: o elogio poético aos Smithson.
É importante relembrar que Banham não está escrevendo seu livro no momento dos manifestos pelo Novo Brutalismo de 1953/1955 mas em 1966, quando o termo brutalismo já havia agregado outros e distintos significados e se tornado relativamente reconhecido e consagrado internacionalmente, e assumido um sentido de viés predominantemente estilístico. Banham não ignora esses desdobramentos; mas apresenta datas e fatos em ordem não cronológica para sustentar seu mito de fundação do Brutalismo d’après casal Smithson. Pode-se aceitar que ele chegue a provar que o “Novo Brutalismo enquanto movimento” seja de origem inglesa e smithsoniana; mas que a obra dos Smithson seja fundadora do estilo que se seguirá; e ainda mais, que a Escola de Hunstanton (projeto dos Smithson de 1949-1954) seja brutalista – assim garantindo sua precedência temporal “original” – é uma extrapolação bastante duvidosa (para ser gentil e não dizer que é falsa). Esse ponto merece um esclarecimento extra.
Adendo: o não-brutalismo da Escola de Hunstanton
Segundo Banham, o primeiro edifício “a receber dos seus autores a designação de Novo Brutalismo foi a Escola Secundária de Hunstanton, projeto de 1950 completado e publicado em 1954. Trata-se de obra sem dúvida do maior interesse e relevância para a história da arquitetura do século 20, de caráter bastante inovador para seu momento. Mas apesar de sua alta qualidade a Escola de Hunstanton não pode ser considerada “brutalista” sob quaisquer das acepções do termo. Caberia, isso sim, considerá-la uma inteligente releitura do Mies americano pós-1946, de mistura com os debates do palladianismo então vigentes no meio intelectualizado inglês. Essa filiação brutalista, forçada por Banham e pela revista Architectural Review, é contestada na mesma edição por Philip Johnson, ao comentar a obra; donde se vê que o assunto nunca foi pacífico.
Evidentemente há pontos em comum entre as características arquitetônicas de Hunstanton e as obras brutalistas de alguns anos depois, o mais notável sendo o uso aparente dos materiais construtivos e instalações de serviços. Mas as diferenças são também demasiado significativas para aceitar sem nenhuma sombra de dúvida que a Escola de Hunstanton possa ser arrolada como origem do “brutalismo enquanto estilo” das décadas seguintes. Que a Escola de Hunstanton seja uma obra de primeira grandeza é inegável; que tenha catalizado a posteriori as insatisfações da uma nova geração de arquitetos ingleses, agrupados sob a rubrica, semi-fabricada pela Architectural Review, do “Novo Brutalismo”, não há dúvida; mas seu brilho permanece isolado, tanto na obra de seus autores, como em relação ao cânon brutalista.
Essa questão é muito relevante: é tanto uma verificação de pertinência como uma precisão de datação. O brutalismo, enquanto tendência estética, só se manifesta internacionalmente (à parte o mestre Le Corbusier) em obras realizadas a partir de 1957, ou no mínimo, a partir de 1953, e não antes; não tendo nem os ingleses nem quaisquer outros paises precedência nessa datação; a “conexão brutalista” é uma rede complexa sem ponto original que não seja corbusiano, um “estilo internacional” tanto ou mais prevalente que aquele outro dos anos 1930 (e por sinal, muito mais consistente em termos estilísticos). A correção desse ponto não é secundária, pois colabora grandemente para situar e incluir, de maneira correta e precisa, também o Brutalismo Paulista enquanto manifestação concomitante e não subordinado, mas paralelo, a essas manifestações internacionais. Ou, aproveitando-se Banham, torna-se legítimo inseri-lo na “conexão brutalista” sem que haja qualquer defasagem temporal significativa.
1966: Brutalismo enquanto “estilo”, versão Banham
Ultrapassado o fabuloso “era uma vez…” com que Banham começa seu livro, buscando em frases e efígies a origem do termo brutalismo (viés improfícuo que apenas validar seu mito fundado), nos capítulos seguintes ele define de maneira muito clara alguns parâmetros de compreensão do panorama onde surge o brutalismo: o conflito geracional/político do imeditado pós-II Guerra; a influência de Le Corbusier através do exemplo da Unité d’Habitation e de suas palavras em Vers une Architecture; a influência de Mies van der Rohe através de suas obras norte-americanas no campus do Illinois Institute of Technology – IIT. E em seguida, Banham dedica-se a exemplificar e definir o Brutalismo enquanto tendência arquitetônica, adotando para isso uma determinada abordagem de análise estética. Esse ponto vale uma nova interrupção.
Adendo: ética ou estética?
Banham admite que as obras brutalistas que vai descrevendo soem vir acompanhadas por discursos mais ou menos inflamados (brave talk) de tom ético-moralizante. Mas percebe a autonomia entre esses discursos e essas obras, já que estas seguem sendo realizadas dentro dos marcos do fazer arquitetônico tradicional, atendendo às “pré-concepções e preconceitos incrustados na arquitetura desde que ela se tornou ‘uma arte’”. Como Banham admite, “os brutalistas estão comprometidos com o último esforço da tradição clássica, não tecnológica; e a ética da conexão brutalista, [que] tal como todas as tendências reformistas da arquitetura, desde Adolf Loos, William Morris, Carlo Lodoli e Collin Campbell, é retrógrada”.
Assim, contrariando suas expectativas artísticas revolucionárias, Banham admite que o Brutalismo apenas vestia com trajes discursivos de ética progressista uma arquitetura de estética conservadora – entendida aqui no sentido que lhe dá Banham, de que ela aceita trabalhar dentro das qualidades tradicionais inerentes ao saber profissional arquitetônico – seja derivadas seja da tríade vitruviana, seja da tradição Beaux-Arts, seja ainda do funcionalismo da “era da máquina”. Para Banham, o Brutalismo (ultrapassada a fase quase impertinente do Novo Brutalismo) havia se tornado “une architecture” [em francês no original], “um idioma, um estilo vernacular; uma estética suficientemente universal para expressar uma variedade de humores arquitetônicos, mesmo tendo perdido algo de seu fervor moral que havia iluminado suas pretensões iniciais de ser uma ética”. Mas nem isso: não é possível perder-se o que nunca se teve.
Passado meio século, essa leitura de Banham não precisa ser aceita de maneira ainda apegada ao tom negativo que este lhe confere: se bem que desencantada, sua análise é bastante fiel aos fatos – e mesmo muito perspicaz. Banham também reconhece que muitos outros grupos ingleses, que não chegaram a subscrever as pretensões ético-morais do Novo Brutalismo, passaram a se apropriar também do Brutalismo em suas propostas; e fala ainda do Brutalismo como uma “estética de armazém”, ou “um estilo economicamente apto a atender aos requisitos de uma sociedade economicamente orientada”. Se há alguma ética, parece ser a da economia favorecendo a exibição estrutural.
1966: características das obras brutalistas, conforme Banham
Segundo Banham: “franca exposição dos materiais; vigas e detalhes como brises em concreto aparente, combinados com fechamentos em concreto aparente ou com fechamentos em tijolos deixados expostos; mesma exposição de materiais nos interiores; geralmente a secção do edifício dita a sua aparência externa; em alguns casos, uso de elementos pré-fabricados em concreto para os fechamentos/ revestimentos; em outros, uso de lajes de concreto em forma abóbada ‘catalã’. Brutalismo enquanto estilo provou ser principalmente uma questão de superfícies [derivadas das Jaoul] em associação com certos dispositivos-padrão tridimensionais, retirados da mesma fonte (calhas, caixas de concreto sobressalentes, gárgulas), com certa crueza proposital no detalhamento e nos acabamentos. Essas características genéricas do cânon nominalmente brutalista aceitariam ser apropriadas por uma ampla variedade de expressões arquitetônicas, derivando sempre em algum grau de referência da linguagem de Le Corbusier, misturada em maior ou menor grau com outras variadas influências”.
E mais: “alguns edifícios brutalistas demonstram uma preocupação com o habitat – o ambiente construído total que abriga o homem e direciona seus movimentos –, conectando o Brutalismo com outros pensamentos e ações progressistas fora do campo arquitetônico. O Brutalismo enquanto movimento teria se concentrado na domesticação de alguns conceitos básicos residenciais e sociais derivados de Le Corbusier, partindo de protótipos corbusianos. A cruzada moral do Brutalismo por um melhor habitat através do ambiente construído atingiria seu pico em algumas de suas obras”.
Ou conforme Renato Pedio, citado por Banham
“O edifício enquanto uma imagem unificada, clara e memorável; clara exibição de sua estrutura; alta valorização de materiais não tratados, crus (brutos). Superfícies limpas e virgens; volumes pesadamente corrugados, mas de simplicidade prismática; serviços expostos à vista; zonas de cor violenta. Brutalismo seria um gosto por objetos arquitetônicos auto-suficientes, agressivamente situados em seu entorno; seria uma afirmação energética da estrutura, a vingança da massa e da plasticidade sobre a estética das caixas de fósforos e caixas de sapato; deseja aproveitar (na base do estudo histórico, mas fora das categorias acadêmicas) as lições da arquitetura moderna, despojadas de suas licenças literárias. E um método de trabalho, mas não certamente uma receita para poesia. E se por um lado seu poder polêmico agora parece reduzir sua forte base moral, por outro lado, destila sua mais significativa essência na agora longa história da arquitetura moderna. Essa castidade moral, esses estândares rigorosos de conduta em face do mundo; essa coragem e espírito revolucionário podem trazer de volta o verdadeiro sentido da relação entre arquitetura e sociedade, atualmente obscurecido por um revivalismo nostálgico”.
Nota-se a linguagem enfática, um tanto obscura, mesclando descrição e princípios morais. Essa será também uma das características do Brutalismo, em suas conexões internacionais.
O relativo esquecimento do Brutalismo na historiografia recente
Uma pesquisa não exaustiva, mas suficientemente ampla, revela uma difusa ausência de outras fontes sobre o Brutalismo; e as que se encontram quase sempre citam, explicitamente ou não, as palavras e idéias de Banham; nem sempre na forma mais apropriada, e nunca se dando totalmente conta das sutis distinções entre as diversas acepções possíveis do termo brutalismo, que é livremente entendido e confusamente referido segundo várias delas ao mesmo tempo e sem muito critério. Com essa quase ausência de fontes fidedignas e ponderadas o Brutalismo segue sendo mal reconhecido, e sua conceituação restando confusa e vaga, mesmo sendo fato histórico arquitetônico de inegável prevalência em certo momento de meados do século 20.
Se nunca chegou a ser uma tendência arquitetônica das mais populares fora do círculo erudito de seus pares – mesmo tendo sido adotado, em algum momento de suas carreiras, pela quase totalidade dos arquitetos vivos e atuantes nos anos 1960/70, e mesmo mantendo ainda hoje forte influência indireta sobre alguns dos caminhos arquitetônicos contemporâneos, do high tech a Tadao Ando, a novas gerações de arquitetos do século 21 – logo após seu auge o Brutalismo rapidamente passa a ser quase execrado, vincado por um desamor ativado tanto por leigos como pela revisão crítica da arquitetura moderna dos anos 1980, que lhe devotou um profundo desprezo; em ambos os casos, com ou sem fundadas razões.
Importantes autores de mais recentes manuais arquitetônicos sequer o mencionam, exceto quando examinam a obra dos Smithson, sem reconhecê-lo em sua acepção mais genérica nem analisar sua ampla influência e estendida vigência. Tendo sido largamente empregado, nos anos 1960/70, no projeto de edifícios de uso governamental ou oficial (clientela apreciadora de suas qualidades monumentais) passou a ser visto tanto pelas autoridades como pela crítica neoliberais posteriores como simbolizando um momento fracassado e equivocado, estética e politicamente. Assim, por boas ou más razões, mas sempre superficialmente, a arquitetura do brutalismo dos anos 1950-1980 não recebeu até o momento a devida atenção nem um tratamento e reconhecimento mais sistemático de seus aportes. Em resumo, os autores de arquitetura mais eruditos, conhecidos e acreditados, ou bem repetem Banham rápida e inconseqüentemente, ou ignoraram ou mesmo hostilizam a arquitetura brutalista.
Encontram-se porém outras fontes, menos eruditas e sem pretensões à precisão dos termos, que citam o Brutalismo, invariavelmente como um “estilo” dentro do “modernismo” nos anos 1950 a 1970, principalmente na rede mundial (internet). Mesmo sendo menos confiáveis, são amplamente acessíveis por leigos e estudantes, havendo assim algum interesse em revê-las, desde que expurgando-se devidamente os casos mais estapafúrdios e desfocados, mas sem exagerar – pois que algumas dessas fontes, pese a sua maneira de expressão um tanto naïve e apressada, chegam a compreender bastante bem alguns dos mais relevantes aspectos do Brutalismo. Por economia de espaço não serão aqui citadas, mas o leitor interessado pode consultá-las instantaneamente na outra orelha do seu browser.
Brutalismo: superficial e não essencial – e pior isso, adequado
A surpreendente ausência de definições mais sistemáticas do termo brutalismo, apesar da relativa facilidade como ele é empregado, aceito e aplicado a certas manifestações da arquitetura moderna de meados do século 20, é um tanto paradoxal. Seria o brutalismo um termo tão vago e inespecífico, que conviria, no limite, não se avalizar seu emprego de maneira séria e conseqüente? Segundo William Curtis, tanto o pós-modernismo quanto o brutalismo se mostram de difícil caracterização enquanto um “estilo” nitidamente delineado, embora certamente configurem um conjunto, mesmo que vago, de aspirações e rejeições. Entretanto, não parece tão difícil listar suas características a partir da análise da coletânea de obras a que foram atribuídas o rótulo de brutalistas.
Portanto, parece não haver dificuldade prática em saber quais obras são, ou parecem ser, ou ao menos admitem ser indicadas como sendo, brutalistas; nem em elencar suas características arquitetônicas, construtivas e simbólicas. O que parece escapar por entre os dedos é a possibilidade de encontrar, em tantas e tão diversas manifestações ditas “brutalistas”, pouco mais do que seu “ar de família”, algo além de certa sensibilidade táctil, de algumas persistências formais e materiais, e cuja eventual ausência neste ou naquele exemplo tampouco prescrevem de imediato a inscrição de uma ou outra obra nesse vago e inclusivo cânon. Como afirma Curtis, parece que só resta dizer que “o cliché dessa arquitetura era a superfície de concreto armado aparente, conseguida com a ajuda de fôrmas de madeira bruta”. Isso afinal é muito pouco para configurar uma tendência, muito menos um estilo, já que nem mesmo esse requisito é fixo, havendo confirmadas obras ditas brutalistas, por exemplo, em alvenaria de tijolos.
Como argumento contrário final, o termo brutalismo parece inadequado, mesmo se as obras que embala possam ter seus traços característicos bastante bem descritos (coisa obviamente possível), por não chegar nunca a garantir que essa acepção se baseie em alguma qualidade ou lastro essencial, unindo sem sombra de dúvidas todas, ou a grande maioria, das suas manifestações. Essa qualidade poderia ter sido a ética (ou ao menos uma moral operativa aplicada ao projeto arquitetônico). Mas isso não seria uma definição, e sim o escape da vaguidão do domínio arquitetônico à ainda mais profunda vaguidão de outro domínio – o ético-moral – saindo da arquitetura para entrar na filosofia sem de fato resolver-se o problema de definir o brutalismo; e se adotada, acabaria englobando toda e qualquer manifestação arquitetônica que se pretendesse ética, perdendo especificidade.
Entretanto, ao invés de descartar o brutalismo como termo inadequado, conceitualmente vago, ou inefável, é possível que ele revele – se aceitarmos os fatos em si mesmos de maneira pragmática, ou talvez “fenomenológica” – ser paradoxalmente adequado. Basta considerar ser possível renunciar à busca de uma harmonia interna entre obras de aparências aproximadas, mas muitas vezes de essências díspares; e, ao invés disso, buscar compreender que o que de fato as reúne não é muito mais, embora sim substancialmente, seu aspecto externo e superficial.
Se for possível aceitar esse caminho “superficial”, “não essencial”, como válido, talvez não haja contradição ao dar-se o título de “brutalista” a resultados próximos, corretamente datados, compartilhando um conjunto mais ou menos definido de características formais e superficiais, mesmo que cada uma das obras revele, numa análise individual mais detida e cuidadosa, muitas diferenças conceituais e de intenção ética e moral; garantindo-se a variedade em potência das obras ditas brutalistas, sem perda de sua inserção nesse conjunto.
Para dizer de outra maneira, pode-se simplesmente afirmar, com base nos fatos, que determinadas obras serão brutalistas, apenas e suficientemente porque parecem ser; e que o que determina sua aproximação e inserção na tendência não é sua essência, mas sua aparência, não é seu íntimo, mas sua superfície, não são suas características intrínsecas, mas suas manifestações extrínsecas.
É possível ser brutalista certa arquitetura paulista dos anos 1950-70?
Pode-se concluir, a partir de uma leitura criteriosa das fontes disponíveis, com ênfase na contribuição de Reyner Banham, que o Brutalismo não se restringe em absoluto ao “Novo Brutalismo”, nem antes, nem depois da afirmação daquele “movimento” britânico, que se dá por volta de 1953-55. Banham afirma que o brutalismo se manifesta em obras situadas em várias partes do mundo, sem aparentemente nenhuma relação de afinidade entre si, exceto por compartilharem os ensinamentos presentes na obra de Le Corbusier. O momento em que o brutalismo surge no campo arquitetônico parece ser o de meados dos anos 1950, ainda enquanto exceção; com notável incremento após 1960, já com o reconhecimento da tendência por parte de alguns autores e da maioria dos críticos; experimentando uma grande expansão nas décadas de 1960/70, a ponto de se adquirir certo status de “vernacular moderno” naquele momento.
As datas e os conteúdo conferem. Os discursos se aproximam

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